Por a 25 Novembro 2020

«Nada se perde, tudo se transforma.» A máxima de Antoine Lavoisier reflete bem a atmosfera desta habitação, num andar entre uma pensão e um alojamento local. Uma casa vivida, cheia de histórias, memórias e personagens de outras andanças.

Fotografia: Gui Morelli, para Revista Urbana I Por Mafalda Galamas

Junto ao Largo do Chiado, num piso empedrado e pitoresco, ergue-se um prédio pós-terramoto com características singulares. A agitação da pensão cabo-verdiana, do piso de baixo, compete com o frenesim do alojamento local, no topo. Entre um e o outro, um apartamento de 210 m2 que se distribui por sete assoalhadas. O pé-direito de 3,40 m, os tetos trabalhados, as janelas de 2,90 m de altura ou o pavimento original foram algumas das características que mais cativaram Ricardo Seguro Pereira. Para o arquiteto, este foi o cenário perfeito para desenrolar a história dos seus dias, divididos entre a zona mais privada da casa e o atelier que partilha com a sua equipa.

Poucas foram as intervenções que Ricardo levou a cabo nesta sua nova morada, mas a pintura das paredes foi uma delas. O amarelo (quase) integral, tão tendência dos anos 90, deu agora lugar a uma tela em branco, a partir da qual foi pensada cada uma das divisões.

À entrada somos recebidos por uma consola em vidro temperado e um cadeirão repescado do lixo, cuidadosamente restaurado. O candeeiro Ikea, as plantas naturais e o quadro de Luís Morete ajudam à criação do cenário desta “casa partida”. As malas de viagem, tal como o arquivador, são de família e servem para manter as cápsulas de café sempre por perto. Ao lado, a sala de estar onde tudo acontece…

Rapidamente detetamos alguns dos seus ex-líbris: pousada no chão, a placa “Avenida do Restelo” parcialmente destruída. Pelo próprio. Um acidente com o seu smart derrubou a placa do bairro lisboeta, que por lá permaneceu, em cacos, mais de um ano… Também o candeeiro de inspiração tropical Life and Leaf (sobre a mesa de jantar com cadeiras estofadas com tecido igual ao do hall) e da autoria de Ricardo Seguro Pereira faz parte da trilogia de favoritos, juntamente com o tampo de mesa de apoio ao lado do sofá. E que é, na verdade, uma portada antiga.

Muitas das peças que compõem a sala transitaram da anterior casa do proprietário. Muitas outras vieram daqui e acolá, de obras em que esteve envolvido. Já o sofá de veludo, estofado de amarelo, foi repescado do lixo. Hoje, devidamente restaurado, apresenta outro porte. Uma característica deste projeto é, precisamente, o facto de poucas peças terem sido compradas em lojas, como o caso raro do candeeiro “Capitain Flint”, da FLOS, por exemplo. O armário de arquivo encostado à parede foi herdado da empresa dos avós, e veio diretamente do Porto, tempos depois de ter sobrevivido a um forte e trágico incêndio. Tem agora a missão nobre de acolher “As Pupilas do Senhor Reitor”, que heroicamente também resistiu às chamas.

Outra das peças que nos despertam a atenção é a caixa de pólvora grafitada, de 1953, que veio do entulho de uma obra. O escadote-biblioteca foi negociado com um pintor: «Comprei-lhe um novo em troca deste e ele ficou todo contente», conta Ricardo. Todas as mesinhas de apoio foram improvisadas com os pequenos espelhos que já existiam nas paredes da habitação, não fosse o proprietário um adepto da reciclagem e personalização de objetos. Nas paredes moram as molduras que exibem projetos rabiscados pelo arquiteto.

A poucos metros deste espaço… A sala de reuniões que à noite se transforma em sala de jantar para servir os “wine dinner”, que faz com a Wine Post várias vezes por semana. A mesa foi a primeira mesa de trabalho da famosa Padaria Portuguesa e oferecida ao proprietário, como simbolismo de uma nova fase, que se deseja de sucesso semelhante! Por detrás, um balcão de madeira, genuíno, herança da empresa da família do Ricardo. É neste espaço que estão reunidas as amostras, de tecidos a papéis de parede ou tapetes.

À porta a indicação: “Daqui não se pode passar”, uma recordação da sua estadia no Japão e que ajuda a definir fronteiras entre o espaço privado e de trabalho, já que o atelier funciona para lá desta porta.

Ainda na ala mais reservada da casa, observamos, numa espécie de antecâmara, um recanto cénico. A escrivaninha com máquina de escrever incorporada veio da empresa dos avós. O espelho dourado oferecido por uma amiga, os cadeirões vieram diretamente do lixo e, claro, plantas, muitas e naturais!

No quarto principal, o preto das paredes ajuda a disfarçar o excesso de luz da divisão. Em termos de mobília, algumas das peças foram personalizadas, como a consola-cacifo debaixo da janela, com tampo pintado de preto. Bem como a cabeceira de cama com prateleiras e almofadas de exterior pela sua resistência. Os candeeiros foram adquiridos na Feira da Ladra e a porta está em trânsito… Veio de uma obra e vai para a decoração de outra, explica-nos o arquiteto.

Paredes-meias está o quarto de vestir, ocasionalmente, de visitas. Ao móvel adquirido no OLX, em destaque nesta divisão, foi retirada a porta com o espelho e colocada na parede. De destacar que algumas das peças pessoais do proprietário são usadas para decorar, como podemos ver pelas botas de ski, para citar apenas um exemplo.

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