A co-diretora do Departamento de Cerâmica do Ar.Co, que assina a fachada do novo Hotel Hotel, descreve-nos a forma como as referências, a arquitetura e os processos industriais podem dialogar para dar origem a superfícies e fachadas dinâmicas, algumas vezes imperfeitas, projetando a tradição num contexto contemporâneo.
Texto: Isabel Figueiredo
A relação de Maria Ana Vasco Costa com a Ar.Co surgiu depois de regressar de Londres, e de trabalhar como arquiteta. “Senti alguma necessidade de repensar a minha atividade e foi nessa altura que fiz o curso de Desenho e me inscrevi no curso de vidrados de cerâmica”. Não demorou muito tempo até concluir a sua formação, mas antes disso já tinha sido convidada para monitora do departamento de cerâmica da escola, e decorridos uns quatro anos, quando iniciou o curso avançado de artes plásticas, foi convidada a dirigir aquele departamento, ao lado da sua responsável na época, que vivia no Algarve.
Este contacto com a escola e o departamento de cerâmica consolidaram a vontade de ali permanecer. “Adorei toda a envolvente, a mecânica e tudo aquilo me pareceu uma descoberta – estávamos em 2009 –, desde logo, identifiquei um grande potencial e fascinou-me o contacto com o material, com a terra”. A sua experiência como arquiteta aumentou a vontade de repensar a escala das peças e do vidrado, de ver ampliado o impacto da cor. Tal remetia-a para a tradição do azulejo, afinal, Maria Ana cresceu em Lisboa, numa cidade rica em azulejos, e ela própria já tinha como referência alguns nomes marcantes, como Maria Keil ou Eduardo Nery. “Acreditava que ainda havia algo por fazer, queria explorar ao máximo o potencial dos azulejos, usando peças tridimensionais, trabalhando a cor, as sombras, e ver esse trabalho materializado em paredes e nas fachadas dos edifícios. E foi essa a forma que encontrei para aplicar a minha sabedoria à arquitetura e desenvolver um novo trabalho, sem me desviar das minhas referências, mas tentando inovar”.
Este não é, contudo, um processo simples ou linear. A relação com a indústria faz dele uma operação mais complicada e para tal é necessário “muito know-how, levar a cabo muitos testes… há uma grande diferença entre fazer cerâmica em atelier e fazer cerâmica para a indústria, porque estamos a desenvolver cinco mil peças iguais, e como há sempre muitas alterações, estas peças, num forno industrial, não podem ser desperdiçadas”, diz-nos. E retoma: “Tudo tem de ser testado, e muito testado. Como tal, a forma que encontrou para desenvolver estes trabalhos em cerâmica de grande escala, e segundo processos industriais, foi manter a tradição e a manualidade. “No passado, a imperfeição estava lá, nas fachadas, mas com os processos industriais tão afinados isso perdeu-se e hoje as superfícies são muito estáticas, como tal quis imprimir às fachadas aquela sensação de que a mão está presente, que há variação de cor, usando processos artesanais, usando óxidos naturais nos vidrados, sabendo que os materiais, no forno a gás, têm a sua cor alterada, que as imperfeições são acentuadas”.
Costuma dizer que não há uma segunda escolha. Os seus azulejos – e dá como exemplo a fachada do novo Hotel Hotel, em Lisboa, um trabalho em conjunto com o estúdio Pedrita – têm estas variações de cor, algo que num trabalho industrial seria inaceitável. Mas ela gosta de manter essa tradição artesanal, mesmo laborando lado a lado com a Indústria.
Para cada trabalho, Maria Ana parte de uma leitura da envolvente, tem muitas conversas com os arquitetos e a partir daí vão surgindo as ideias, que são depois passadas para computador, e depois para modelagem 3D, dando origem aos protótipos iniciais das peças que, mais tarde, serão feitas em fábrica e irão cobrir uma superfície. “Faço alguns testes de cor e vou ao local confirmar se as ideias que passei para o computador carecem de alguma retificação.” Todo este processo assenta num diálogo constante com as partes envolvidas e em muitos testes – os protótipos iniciais passam para os moldes de prensa que são desenvolvidos para o efeito, de onde saem uma 300 peças por dia e todo este processo, bastante industrial, serve para transformar o barro até ao produto final. “Há uma primeira queima, as peças ficam rijas e ganham resistência, é-lhes aplicado o vidrado segundo a receita original, passa-se à segunda queima, de onde as peças saem com a cor definida inicialmente. Depois disto, as peças são entregues em obra e o diálogo mantém-se, desta feita com o empreiteiro, e que acompanha o seu trabalho. “No caso de trabalhos de menor escala ou internacionais, tenho um manual de instruções, no fundo, desenhos que explicam o processo de aplicação.”
O caso do Hotel Hotel é um projeto de grande escala. E não sendo o maior que a arquiteta e artista plástica já desenvolveu, é o primeiro (2015 – 2021) com grandes dimensões – atualmente, está em curso outro projeto com cerca de 300m2 de superfície de azulejo. Não sendo o maior, foi, contudo, muito desafiante. “Quando a Rita, dos Pedrita, veio ter comigo, já conhecia o meu trabalho e tinha um pedido especial. Era desejado que a fachada fosse algo que se destacasse, que refletisse a envolvente, que tivesse muito impacto na cidade. Propus, para tal, um vidrado que, com a captação da luz do sol, refletisse os cenários e tivesse o tal efeito desejado. Recordo-me de ir ao Jardim Zoológico com os meus filhos e de me inspirar na pele das piranhas para esta fachada, porque, de facto, as peças parecem escamas de um peixe”, revela.
“Ainda pensei num padrão mais constante, mas o cliente chamou-me a atenção para as várias cantarias e janelas, para a necessidade de um desenho mais decorativo, que abraçasse a arquitetura”. O projeto demorou muito tempo, mas o resultado final é, como nos diz, incrível. “Quando removeram os andaimes fiquei nervosa durante uma semana, é algo fortíssimo, demorei a assumir aquilo que tinha feito, o seu impacto, porque eu sou uma pessoa discreta, mas é de facto interessante como o trabalho em 3D, aquilo que o computador nos mostra, depois, ao vivo, tem um impacto tão forte em nós”.