Por a 8 Fevereiro 2022

Uma casa especial – não o são todas? Mas esta é-o em todos os sentidos. No que encerra, como nela se circula, na forma como dialoga com o exterior e com a Arte, em todas as suas vertentes, de tantas épocas e origens.

Texto: Isabel Figueiredo; Produção: Amparo Santa-Clara; Fotografia: José Manuel Ferrão

Fiel depositário de muitas relíquias, amante da arte, da natureza, do bridge e da vida, em bom rigor, o proprietário desta casa abriu-nos a porta ao seu mundo numa manhã do início da primavera. Fomos abençoados pelo dia de sol e céu límpido. E pela sua generosidade.

Adquirida em planta, esta casa exibe hoje um layout muito diferente do original. Havia que dotá-la de todo o conforto mas, acima de tudo, ajustá-la ao estilo de vida, gostos e necessidades de quem ali habita. Homem sozinho e sem filhos, a quem não faltam, contudo, momentos de reunião com amigos e horas vagas para os longos passeios diários, era seu objetivo reunir debaixo do mesmo teto as peças de arte e de mobiliário, os artefactos, joias, pequenas relíquias e livros que durante tantos anos foi colecionando. Mas também, o cenário vivo da Quinta onde se insere.

Como tal, os dois anos de espera até ver terminadas as pinturas decorativas de paredes e teto, levadas a cabo pelo amigo Salvador Corrêa de Sá, nome maior da cena dos interiores em Portugal, não se afigurou um problema. O resultado, mesmo ao cabo deste tempo, fascina sempre quem ali entra, a cada visita, porque esta é, também, uma casa ‘orgânica’ – nunca a encontraremos exatamente igual à forma como a vimos da última vez.

Alojada num último andar, abraçada pela extensa mancha de verde da Quinta e rodeada de generosos terraços a partir dos quais se avista o mar, a cobertura é, ela própria, como um grande miradouro. E quando as portas da sala, palco principal desta residência única, se abrem ao exterior, os jardins fundem-se com a vegetação do terraço e com as decorações de paredes e teto do interior. Magnífico!

Grand Tour

Assim como quando as cortinas do palco se abrem, e ouvimos aquele sussurro familiar do veludo pesado a varrer o chão de madeira, também aqui temos um pouco essa sensação, quase excitante, de algo que nos vai ser revelado. O elevador transporta-nos silenciosa e diretamente para dentro de casa, para o hall de entrada com o seu teto estrelado, num sedutor azul-noite.

À nossa frente, a sala, para onde somos conduzidos em primeiro lugar, exibe teto e paredes com pinturas decorativas. No teto, o olho é enganado pelo realismo desta pintura, que simula uma enorme tenda de campanha. As paredes seguem o mesmo critério – realista e fantástico, simultaneamente – e animam-se com o cenário de coelhos, mochos, patos ou ninhos de pássaros e da folhagem da Quinta.

O nosso olho, que entretanto vai ganhando alguma prática na leitura desta narrativa visual, topa, aqui e ali, detalhes de enorme riqueza e delicadeza. As ramagens pintadas na parede das portas de vidro de acesso ao terraço parecem invadir a sala, vindas de fora. A estação entra dentro de casa. É primavera, enfim. E no meio de todo este cenário encantador, o sol varre o interior com a sua luz generosa.

Lá fora, no terraço, a história continua. A arte prolonga-se para lá das paredes e entre as plantas e os vasos convivem as esculturas de bronze. Ao canto deste terraço, umas escadas conduzem-nos a um pequeno mirante onde há espaço para repousar corpo e alma.

Regressados ao interior, voltamos a admirar o palco principal. A grande sala, redesenhada em openspace e com um pé direito de quase seis metros, apoiada pela escada de madeira em caracol que conduz a um pequeno escritório na mezanino. Por toda a casa, mas particularmente nesta sala, com distintos ambientes, distribuem-se peças de várias épocas e origens.

Um pequeno museu, diríamos, um vislumbre do passado, o testemunho rico da vida, igualmente rica e cheia, do seu proprietário. Por aqui coexistem um tríptico de marfim e pintura – retábulos e ícones dos séculos XV e XVI, obras da escola francesa dos séculos XVIII e XIX, pintura italiana do século XVII e espanhola, contemporânea –, o pedaço de um lenço que em tempos pertenceu a Maria Antonieta (devidamente resguardado dos dedos curiosos numa vitrina), um biombo de dupla face – inscrições chinesas num lado, pintura no outro -, a exposição de moedas antigas, nomeadamente a primeira moeda grega, várias porcelanas de Sèvres, devidamente datadas e classificadas, bustos e tantas outras peças, herdadas, compradas… E todas, sem exceção, de enorme riqueza, patrimonial e emocional. Porque todas, sem exceção, encerram uma história, uma memória.

De volta à entrada da casa, e abrindo a porta de acesso à suíte, na continuidade da parede de madeira apainelada, imergimos no mesmo universo de recordações. Também aqui foram feitas alterações ao layout original, transformando este espaço num quarto amplo, com vários ambientes, apoiado pela casa de banho, o closet e uma saleta. E tal como na sala, também a suíte é agraciada pela existência de um terraço, profícuo em plantas, flores, vasos, esculturas.

As peças de mobiliário, de arte e os artefactos dispõem-se um pouco por todo o lado. O nosso olhar vai para o oratório com imagens do século XVIII, a coleção de placas esculpidas ou grafitizadas em madrepérola da Terra Santa, dos séculos XVIII e XIX, as esculturas Grand Tour, o conjunto de pedras da Cornualha – o nosso anfitrião é um amante de pedras, preciosas, semi-preciosas, e a penthouse tem várias peças que o atestam  – ou a pintura que retrata o seu proprietário.

A suíte, como a sala, exibe paredes com pintura decorativa e foi, saliente-se, o primeiro espaço da casa onde o pintor Salvador Corrêa de Sá começou por intervir. “Pedi-lhe que trouxesse as plantas do exterior aqui para dentro”, revela-nos. O trabalho de pintura estende-se às portas do armário e todo este ambiente, com o passar das horas, já nos levou a viajar por muitas eras. A nossa imaginação vai longe. Somos turistas dentro desta casa. Neste quarto, destaque, ainda, para a peça na parede da cabeceira da cama, adquirida como sendo uma pintura, revelando-se, afinal, no processo do restauro, um retábulo do século XVII da escola flamenga.

À saída, despedimo-nos da dupla Joana e José Figueiredo, os responsáveis pelo restauro e manutenção de todos os objetos, obras e esculturas da casa, que se detém sobre as peças alvo da sua atenção naquele dia. Visita semanal da casa, são seus fieis curadores e embelezadores e também eles fazem parte desta história.

Haveria muito mais para escrever, descrever, destacar, mas não caberia aqui tudo o que esta casa cheia – de arte e de vida, de histórias – nos conta. Se um dia ali voltarmos, tomaremos nota no nosso caderno de mais descobertas excitantes, ouviremos atentos mais relatos emocionantes. E dali voltaremos a sair com a alma cheia.

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