O apartamento, no primeiro andar de um edifício construído em 1929, no bairro da Graça, foi integralmente renovado depois cerca de 20 anos de abandono, e exibe hoje uma nova alma. O projeto de remodelação coube a Pedro Garcia Marques.
FOTOGRAFIA: GUI MORELLI TEXTO: ISABEL FIGUEIREDO PRODUÇÃO: AMPARO SANTA-CLARA
A construção de grossas paredes mestras em pedra e tabique indiciam a sua data de origem. Mas a traça original, como em tantas casas desta Lisboa antiga, foi sendo adulterada com algumas adições, no início dos anos 80, nomeadamente pequenas despensas, quartos e anexos, “de qualidade duvidosa”, como nos revela o designer Pedro Garcia Marques, o autor do projeto de remodelação.
Havia, como tal, de transformá-la num espaço dinâmico, fluido e confortável, de modo a alojar a família de quatro adultos, “tendo em conta que a casa anterior tinha o dobro da área, e que teria, por isso, de ter uma abordagem prática e pragmática”.
Na posse da mesma família há́ várias gerações, houve, desde o primeiro momento, a intenção de lhe restituir a dignidade perdida.Por estar inserida num bairro histórico, e construída no início do século XX, “houve uma clara e intencional procura de uma narrativa industrial com elementos que nos transportassem para esse tempo, em conjugação com a modernidade contemporânea”, salienta.
E prossegue: “Teria, além do mais, de ser uma casa inteligente, razão pela qual foi incluindo um sistema de domótica que controla iluminação, temperatura e movimento”. Por outro lado, a existência de um espaço exterior afigurava-se extremamente útil, na medida em que este poderia ser tornado parte integrante da vivência da casa.
Foi, por isso, intenção da família dotá-lo de algumas valências, nomeadamente a cozinha exterior, com churrasco e uma mesa de refeições. “A ideia inicial foi aproveitar a base de época existente, dar-lhe um vincado ambiente industrial com toques de sofisticação dos anos 30, conjugados com o conforto e exigências contemporâneas”.
Continua o nosso interlocutor, que revela o layout anterior: a típica casa com corredor de entrada, estreito, e pé direito muito alto, duas assoalhadas à esquerda, orientadas a poente, percorrendo o corredor, um quarto, um único WC e casa de jantar; ao fundo, a cozinha e, do lado direito, um pequeno quarto.“Esta seria a planta original da casa, tudo o que está para além era espaço exterior”, elucida.
A intervenção teve como premissa base restituir a personalidade e dignidade de outrora e adaptá-la à forma contemporânea de viver. Manter a sua identidade, acrescentando elementos que pudessem enfatizar a época de construção, combinar a traça original com o pequeno avançado no terraço (dos anos 80), tirar partido do pé direito alto para colmatar a área exígua, alterar a organização para melhorar a circulação e potenciar a entrada de luz natural e fazer do terraço uma verdadeira extensão da casa, dotando-a de polos de atracão, constituem as alterações levadas a cabo.
“De modo a reforçar a estrutura e conferir melhor performance acústica/ térmica, forraram-se todas as paredes com gesso cartonado e rebaixaram-se todos os tetos, devidamente isolados com lã de rocha”. De entre os trabalhos realizados, somam-se ainda preservação e aprimoramento do soalho de madeira, afagado e envernizado, bem como das portas originais, tendo apenas sido substituídas as almofadas superiores por vidro martelado, para a necessária entrada de luz.
Construíram-se sancas em MDF, para substituir as de estuque, deterioradas, que além do mais incorporam luz, foram construídos os lambris e boiserie em MDF, recuperadas todas as portadas interiores de madeira e mandadas fazer várias paredes divisórias e portas de ferro com vidro martelado, de modo a acentuar a atmosfera industrial do princípio do século XX e, sempre que possível, acrescentados grandes planos de espelho para tornar o espaço mais amplo.
Havendo a necessidade de importar para o interior o máximo de luz natural, o corredor – “em regra, o parente pobre” – foi alvo de um upgrade com o trabalho de madeira, inox e espelho, revelando-se hoje mais denso, mas muito luminoso. Somam-se a estas soluções, o vidro martelado e os puxadores das portas, para o desejado toque de personalidade.
Por haver necessidade de alojar a família num espaço funcional, e em linha com a dinâmica da vivência atual, as questões da luminosidade e espacialidade, prementes, estão, assim, amplamente cumpridas. De entre os vários pedidos, sobressaia, ainda, a necessidade de uma cozinha altamente funcional, prevendo-se o seu uso intensivo, e uma casa de jantar generosa em área, tanto quanto possível, para receber convidados.
Por seu turno, a sala de estar, equipada com uma fonte de calor – a salamandra -, em conjugação com o espaço exterior, tem provado ser (sobretudo nestes últimos meses de confinamento) o íman da casa. É lá que a família e os amigos se reúnem, têm as suas refeições e até trabalham.
Foram, por isso, necessárias “muitas soluções bespoke, que tiveram de ser desenhadas e construídas, conjugando diferentes especialidades”. É disso exemplo o armário em inox e carvalho do WC, que arruma todas as roupas de cama e atoalhados, da ilha e grelha do teto na cozinha, que guarda eletrodomésticos e utensílios de confeção aumentando a área de bancada -, das grandes portas de vidro em estrutura de alumínio tri-rail, que permitem toda a versatilidade de acesso ao espaço exterior, podendo correr para qualquer dos lados ou, lá fora, da solução de grades exteriores, inspiradas na arquitetura marroquina e do sul de Espanha, que cria pequenos jardins, aumentando eficazmente a privacidade da família.
A casa espraia-se em 120m2 de área interior e mais 23m2 de área exterior, revelando-se hoje um apartamento em que centralidade e funcionalidade são principais características. A existência de uma zona ao ar livre, e com tanto potencial, obrigou a um exercício de criatividade muito especial.
Por prolongar a área social em dias de bom tempo, e permitir vistas para a cidade, este espaço foi totalmente revisto. A estrutura armário/cozinha exterior/escadas, gizada para o efeito, é multifuncional: “Inclui armários para os equipamentos do churrasco e jardinagem, zona de armazenamento de lenha para a salamandra, um grelhador Weber e uma pia em lioz, reciclada do lixo, além das escadas de acesso a um terraço superior”.
Feitas as contas, o diálogo com o passado mantém-se vivo, a ligação à cidade intensificada e toda a privacidade e conforto salvaguardadas, nesta casa lisboeta a espreitar o casario.