Por a 14 Maio 2024

Na envolvente tranquila e romântica do Estoril, este antigo armazém de serralharia transformado em loft serve a mente criativa de Clo Bourgard, enquanto casa, espaço de trabalho e de encontro. Um projeto de vida, uma celebração da arte e de bem-viver.

Fotografias: Ana Paula Carvalho / Texto: Isabel Figueiredo

Datado do século 19, o edifício foi, até ao ano 1960, um armazém de serralharia, função que lhe emprestou, durante os anos de atividade, o seu aspeto cru e industrial, um aceno à mente criativa da artista plástica Clo Bourgard que para ali anteviu a sua próxima casa. “Visualizei logo de imediato todo aquele potencial para transformá-lo num loft”, diz-nos. Com um pé direito de seis metros de altura, Clo decidiu construir um mezanino de madeira maciça de pinho, dividindo o espaço em dois níveis de igual altura. “Essa divisão permitiu manter a cozinha e a sala de jantar com uma altura confortável, evitando que se tornasse um espaço muito fechado, deixando área livre para o andar superior, onde se alojam os dois quartos”.

Clo Bourgard

O projeto, que não seguiu um plano arquitetónico formal, “foi sendo desenvolvido ao longo do ano de 2013, de forma gradual e minuciosa, com base numa extensa pesquisa de materiais e na própria dinâmica de trabalho, por forma a que eu pudesse ir identificando as minhas necessidades”. Durante esse ano de reconstrução, Clo recebeu as opiniões de amigos, engenheiros e arquitetos, muito embora o conceito tenha sido gizado, sobretudo, para servir como o seu ateliê de escultura.

Todo o projeto de interiores é da sua responsabilidade. “Como escultora, idealizei um ambiente em open space no qual pudesse usufruir de uma zona de lazer, um lounge de grandes dimensões e, ao mesmo tempo, do meu ateliê, onde trabalho e me foco nas peças de escultura e de pintura, igualmente em plano aberto, suficientemente apto a receber todas estas disciplinas e pensado para proporcionar um dia a dia simpático e agradável”.

A casa soma cerca de 200m2 de área total, destinando-se 150m2 à parte de baixo e os restantes 50m2 ao nível superior. “Não existia rigorosamente nada quando adquiri o espaço, tudo foi reconstruído”, prossegue. “Apenas mantive o piso no seu estado original, uma argamassa feita à base de cimento e pedra muito pequenina, o que lhe dá aquele efeito de laje muito interessante”. A cozinha, feita à medida, partilha o piso térreo com a zona de estar e a área de ateliê. Há uma parte central em pladur e uma biblioteca de arte, a partir da qual partem as escadas de acesso ao nível superior e aos muitos livros expostos. Esta biblioteca foi construída em madeira maciça e é igual à estrutura da mesa do mezanino. “Tive, desde o início, essa preocupação, a de fazer algo muito depurado e, ao mesmo tempo, confortável, que me permitisse ter várias dinâmicas — até porque gosto de receber outros artistas em ambiente de residência — e, nessa perspectiva, uma atmosfera confortável onde se pode trabalhar sempre foi o meu foco”.

O loft de plano aberto, com o seu lounge amplo, é banhado de luz natural graças às grandes janelas de três metros de altura. Do lado direito da grande sala, aloja-se a biblioteca, com seis metros do chão ao teto. Neste nível, acede-se ao ateliê, onde a mesa de jantar, ao centro, recebe amiúde convidados, nomeadamente outros artistas que Clo gosta de reunir em casa. No nível superior, arrumam-se os dois quartos, o de Clo e o da filha, atualmente a morar em Barcelona. A casa tem ainda um pequeno jardim, “uma área verde que é muito fácil de ser vivida”, com uma espécie de longo banco corrido que faz as vezes de prateleira onde repousam muitos vasos, e que contribui para a sensação desejada de, sem sair do mesmo espaço físico, ser possível interagir e cozinhar, ler, receber, trabalhar…

“É extremamente simpático poder morar aqui e, ao mesmo tempo, reunir pessoas e receber eventos culturais”, salienta. “O jardim é uma extensão da casa, mas também da minha forma de viver, e talvez seja o meu espaço preferido porque é nele que eu descanso, leio um livro, estou em silêncio e tenho uma visão da casa muito interessante”.

Inicialmente, o loft era muito depurado, continua Clo. “Era todo branco, realçado pelos elementos e estruturas de madeira clara, como o pinho. Mas com o passar do tempo fui mudando de ideias e resolvi aplicar nalgumas das paredes um azul muito forte, porque ajuda a destacar os meus trabalhos quando os fotografo”, salienta. “Confere-lhes um contraste muito interessante, algo que eu procurava, assim quase em jeito de espaço museológico. Além disso, destaca a zona de trabalho e ajuda a delimitar as áreas destinadas ao descanso ou ao lazer”.

O facto de, desde sempre, ter tido esta vontade de trabalhar e morar no mesmo lugar, prende-se com a praticidade. Sobretudo no seu caso: “É muito interessante para um artista em fase de desenvolvimento de um trabalho ter uma ideia a meio da noite e não ser forçado a pegar no carro para ir ao ateliê. É uma vida de trabalho contínuo, são 24 horas sobre 24 horas e essa foi a maior inspiração para esta casa!”. A par com o lado funcional, Clo conta-nos que os vários lofts que visitou, sobretudo aqueles que conheceu em Milão numa viagem a propósito da sua participação numa galeria, serviram como fonte de inspiração.  

Os interiores exibem vários elementos em madeira, quente e sem tratamento, “às vezes até com sinais de alguma resina, como as das vigas e colunas expostas”, uma das características do loft. “Gosto cada vez mais desta intemporalidade dos materiais”, afirma Clo. Os quartos receberam umas janelas generosas em comprimento, para mais luz natural; algumas paredes têm uma caixa de pladur para se poder aplicar luz LED e aquecer o ambiente. O chão original apenas recebeu uma camada de verniz semibrilho para ganhar mais resistência. A cozinha, feita de madeira lacada a preto sem brilho, tem um visual algo industrial, assim quase “como a cozinha de um sushi man, algo que também me agrada substancialmente, porque gosto muito cozinhar e é um lugar da casa onde eu passo muito tempo a explorar receitas”, explica. “Todas as janelas são lacadas a branco, a mesa de jantar foi construída por mim, passo a passo — primeiro os pés em inox, depois a madeira —, os armários superiores são feitos à medida, proporcionando um aproveitamento da área incrível e estão colocados à volta da janela para que todo o espaço seja maximizado”. Todas as mesas do ateliê foram igualmente feitas à medida, por forma a que ali seja possível receber vários artistas, se necessário. Mas o destaque, aponta, vai para a biblioteca, “construída por um carpinteiro e desenhada por forma a podermos sentar nas escadas e ler um livro, mas também como via de acesso ao nível superior.” A versatilidade e funcionalidade, a par com a estética do lugar, promovem a reunião.

Construído numa zona de chalés, no Estoril — “que é uma área muito bonita e romântica, com várias casas do século dezanove restauradas, de várias cores, arborizada e junto ao mar” —, o edifício dista pouco metros da praia proporcionando caminhadas junto ao mar. “É bastante inspirador e nutre a criatividade. Percorrer o paredão de Estoril a Cascais é sempre uma forma de promover a atividade física e intelectual e isso é uma mais-valia para mim. Estar tão perto do mar é muito inspirador para qualquer artista”.

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