Por a 2 Junho 2020

Do briefing dos arquitetos constava a necessidade de trazer esta casa para o século XXI e honrar a sua história rica e as pessoas que ali viveram – um casal que sobreviveu ao horror do holocausto.

Fotografia: Peter Clarke / segundo a memória descritiva dos arquitetos

Na década de 1960, na Austrália, os subúrbios eram como uma fábrica de sonhos. Um lugar onde todos poderiam criar a sua família, e raízes, para as gerações futuras. Para Adam e Helen, refugiados judeus que chegaram à Austrália via Bélgica e Paris das cinzas da Europa de Hitler em 1953, isso representou muito mais. Herói de guerra, Adam chegou à Austrália com a mulher, Helen – uma sobrevivente da diabólica máquina mortífera nazi, Auschwitz – com pouco mais do que as roupas vestidas.

O casal habitou primeiro em Elwood com a família, antes de se mudarem para uma pequena casa em Caulfield South com o seu único filho, Henri, ao mesmo tempo que iam expandindo os seus negócios de moda. Quando o dinheiro o permitiu, compraram um quarteirão do outro lado da rua no subúrbio, do sudeste de Melbourne, e encomendaram a casa dos seus sonhos, a casa em que viveriam para o resto da vida.
Tendo crescido em famílias europeias de classe média antes do Holocausto devastar a Europa, Adam e Helen estavam habituados a coisas boas e queriam que o seu novo lar refletisse isso.


Construída em 1968 pelo proeminente arquiteto Michael R. E. Feldhagen (um protegido do renomado mestre modernista Ernest Fooks), a casa representava o auge da sofisticação e da tecnologia de ponta. Fooks e Feldhagen eram judeus europeus e construíram muitas casas para famílias judias ricas naquela área. Combinando o modernismo internacional de inspiração europeia com adornos e ornamentos luxuosos, criaram um vernáculo exclusivo para Caulfield e os seus arredores.

Com trabalhos de marcenaria executados sob medida do mestre artesão Jacob Rudowsky, a casa era uma declaração de design, mas para Adam e Helen era também um símbolo orgulhoso do triunfo sobre a adversidade. Em 2013, após a morte dos avós, a casa foi entregue à neta, Danielle, uma profissional de marketing digital, e ao marido, Adam, escritor, que quis restaurar a casa e devolvê-la à sua antiga glória.

Amantes das casas de linhas direitas e telhados planos, os clientes estavam convencidos de que a casa deveria ser respeitosamente restaurada e preservada.

O briefing que o arquiteto Brad Wray, da Branch Studio Architects, recebeu assentava na necessidade de ‘trazer’ a casa para o século 21, honrando a sua rica história e as pessoas que ali viveram. Tratava-se de permanecer fiel à visão de Feldhagen, incorporando acabamentos e tecnologias, invulgares numa construção residencial na década de 1960.

As janelas de aço com vidros duplos e perfil baixo chamam a atenção, ininterruptamente, para o santuário do jardim; pisos de cimento polido, paredes caiadas de branco, a ilha na cozinha em equilíbiro que anuncia o coração da casa; um WC de cimento semi-exterior… Tudo foi pensado com um cuidado especial para reincorporar a marcenaria complexa e elaborada. A combinação dos armários criados com mestria com materiais como madeira compensada, gesso e cimento parecia ser um risco. Mas calculado. A esperança era que o casamento entre o cru e o refinado fosse perfeito e elegante. O resultado superou em muito as expectativas do cliente e do arquiteto.

Era importante que esta fosse uma casa de família completamente moderna, prática e bonita, que incorporasse a beleza do passado; mas não deveria ser um mausoléu de meados do século.
Para esse fim, todos os espaços do edifício de dois andares foram totalmente reimaginados. Quase 50 anos após a concepção da casa da família, um novo capítulo começa, testemunho do legado de Adam e Helen, cujos tijolos e argamassa são uma declaração de desafio e resistência nascidos do período mais sombrio da história humana recente.

“Era nossa intenção que os novos trabalhos empreendidos não tivessem qualquer impacto sobre a integridade da casa original e as suas memórias. Geralmente, existe uma linha muito ténue entre a criação de um ‘museu’ nostálgico e a remoção de toda a noção do existente. Papéis de parede, lustres e tecidos foram mantidos sempre que possível, incluindo os móveis Rudowski existentes, que foram restaurados. Vários sofás existentes foram reestofados para dar-lhes uma nova vida”.

As janelas de madeira pintadas, traseiras e dianteiras, foram substituídas por janelas de aço de altura total que abrangem os espaços interiores com uma rica luz quente.

Um novo deque, delimitado de ambos os lados por duas telas de alumínio preto perfuradas, oferece muita privacidade e resolveu um problema prático de vista; mais importante, foi usado para estender as áreas internas de modo a flexibilizar a ligação de espaço interno / externo.

O corredor / hall de entrada escuro foi reimaginado como um espaço de galeria revestido de madeira compensada, cheio de luz, para exibir arte e funcionar como fator de surpresa a quem visita a casa pela primeira vez. Este espaço também funciona como uma espécie de cordão umbilical, ligando e fechando simultaneamente os espaços de estar, cozinha e sala de jantar da casa com as áreas mais privadas, a dos quartos, quando os ocupantes dão uma festa, por exemplo.
Uma parte da parede da cozinha foi removida de modo a integrar a área de jantar e o jardim na casa. A cozinha exibe uma paleta simples e mínima, mas útil, de materiais e detalhes. A configuração dos armários permite ocultar a ‘dinâmica’ da cozinha através de uma série de painéis deslizantes e dobráveis.

Em frente à cozinha, um espaço aconchegante com a TV está recolhido, criando uma área mais íntima, sobretudo para ver um filme e ler um bom livro. Um grande painel deslizante de altura total permite que o espaço se torne ‘uma parte’ da sala principal ou seja completamente separado e escondido.

Tanto a cozinha como o espaço de TV abrem-se para uma sala de estar / jantar generosa, onde se destacam as memórias restauradas do passado. Numa extremidade, destaque para um aparador linear de pau-rosa e o móvel-bar projetado e fabricado por Jakob Rudowski na década de 1960. Os sofás existentes – também de Rudowski – foram devolvidos à vida, agora com um novo estofo verde-limão. Uma nova mesa de jantar em carvalho e aço personalizada combina com o piso de cimento polido.

No outro extremo da casa, uma série de quartos e casas de banho foram
reconfigurados e reimaginados para acomodar os clientes e a sua família em crescimento.
Na ligação ao hall de entrada / galeria, um lavabo social revestido de formas pretas e azulejos verdes cria uma introdução ousada nos espaços. Uma série de três quartos e uma casa de banho infantil surgem no corredor central, parte do qual foi ocupada para acomodar um closet de apoio ao quarto principal. Este é cheio de luz e exibe a vista emoldurada da copa das árvores do jardim da frente. Uma casa de banho robusta porém elegante, com uma série de elementos de betão armado, como banheiras e lavatórios, contrasta com o aço pretos, espelhos e luminárias de suspensão, que em conjunto com uma luz natural filtrada criam uma temática espacial ‘sombria’.

O nível mais baixo foi reconfigurado para se tornar uma espécie de unidade independente quando os filhos pequenos do cliente crescerem. Por enquanto, os espaços alojam uma adega íntima, um WC e uma sala de leitura/ escrita, com ligação direta ao pátio da frente. Este espaço no pátio da frente foi reivindicado ao jardim, anteriormente não utilizado, de modo a ser um espaço prático e utilizável para contemplação e relaxamento.

Do nível da rua, as janelas da frente existentes foram substituídas por janelas de aço fino com vidros duplos. Um esquema mínimo de cores brancas foi aplicado ao elementos de pedra e alumínio existentes. A cor preta foi usada para celebrar as linhas estruturais formais existentes. Os tijolos laranja, também existentes, foram mantidos para preservar a história da casa e a glória eterna.

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